domingo, 22 de maio de 2011

Sobre religiões, práticas e tolerância, uma tentativa de diálogo

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No começo de fevereiro, escrevi para o Amálgama o post “Quando confunde-se religião com práticas” em resposta a outro artigo, de Amâncio Siqueira, sobre as práticas religiosas e, em especial, sobre o Islamismo.
Considero ainda hoje as análises feitas sobre o Islamismo extremamente “orientalistas”, para citar Said. O cristianismo acaba sendo criticado, mas de forma mais branda, afinal, somos herdeiros desta cultura, a conhecemos muito bem. Mas já aquilo que desconhecemos sempre parece mais radical, mais terrível, mais grotesco e perigoso. Nada mais falso.

Minha resposta foi dada, enfim.
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Recomendo vídeo postado no Bule Voador sobre as interpretações incorretas no Corão e o preconceito que existe contra muçulmanos e sua religião.
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Mas eis que, em 20 de março, Eli Vieira escreve um post para o excelente blog ateísta Bule Voador rebatendo minha posição e, em conjunto, criticando também a posição de Bruno Cava sobre o assunto.
Um post muito bom, mas, em minha opinião, ainda impregnado do mesmo orientalismo de outro ator e, finalmente, com os mesmos preconceitos comuns a muitos ateus – admito também ter alguns, obviamente – quando o assunto é a religião e suas práticas.

Concordo que a religião, em si, deva ser fruto dos interesses de uns dominarem os demais, mas passados séculos e milênios, ela adota características próprias e se descola mesmo da figura de líderes ou liderança, passando a permear as vidas dos indivíduos. Mais que combater, é preciso conscientizar. Não estigmatizar, mas matizar. Em muitos casos falamos do norte, do elemento norteador, do fundador da moral e mesmo pai da ética dos seres humanos, algo que vai muito além da mera religião, do mero ato de se respeitar a um superior supostamente emissário ou intermediário de um deus.

Religião é muito mais um instrumento nas mãos de homens, mas também o cimento que deu origem às bases da sociedade – não sem críticas, não sem evolução, oposição e mesmo subversões.
Enfim, eis minha resposta ao Eli:

Muito interessante, mas ao menos para a “minha” parte, reafirmo o que havia dito antes. Em primeiro lugar, “livros sagrados” são nada mais que passíveis de interpretação. São livros feitos em determinada época, com linguagem e intenções de época que devem, enfim, ser interpretados continuamente. Oras, se existem muçulmanos moderados (penso que a maioria), que discordam da interpretação de radicais, logo, estamos diante de um livro em que um grupo de pessoas interpreta da forma A, e da forma B.

A questão como eu havia dito, volta à interpretação feita, à leitura feita. É possível apontar passagens da bíblia (especialmente no Antigo Testamento)  em que o teor e conteúdo são muito semelhantes aos do Corão, lembrando que o Corão bebe da fonte judaico-cristã diretamente e jamais foi negado o fato.

Mas, quantos cristãos efetivamente seguem estes preceitos “atrasados” encontrados na Bíblia? Temos até nosso grupo de fanáticos católicos da Opus Dei que se martiriza e mesmo pastores charlatões que interpretam a bíblia de sua forma deturpada e roubam dos fiéis, vide IURD, Silas Malafaia e cia. Interpretam da forma que querem, assim como muitos fundamentalistas islâmicos.

Religião em si é supremacia. Se você acreditam no deus A, logo, o deus B, C e D são inferiores, ou melhor, nem existem. Você está certo, é superior. Esta é premissa básica de qualquer religião, logo, não é estranho haver referências a como tratar infiéis em livros sagrados, mas, devemos nos lembrar, livros escritos em um período muito diferente do nosso.

Mas, na verdade, melhor exemplo para se tratar do Islamismo e das deturpações feitas é lembrar da era de iluminação islâmica, que durou até pelo menos a Reconquista. Se hoje temos ciência, alfabeto, medicina, enfim, boa parte da nossa base de pensamento, é porque os muçulmanos conservaram e desenvolveram pensamentos complexos e os espalharam pelo mundo.

Os “infiéis” eram tratados com respeito e apenas sofriam penalidades se desrespeitassem as leis que, como dentre os cristãos, estavam subordinadas à religião. Mas, em geral, judeus e cristãos viviam em perfeita harmonia com muçulmanos dentro de reinos islâmicos.

Estamos, enfim, diante de interpretações literais que se tornam deturpadas quando simplesmente apresentamos a realidade, o momento histórico, a própria história do desenvolvimento desta mesma religião e o que esta representou no passado e pode ainda representar.

Sobre a sharia, é importante lembrar que, como o próprio Corão, é passível de interpretações. Trata-se de um código legal, logo, não pode, nem deve ser interpretado ao pé da letra e, tampouco é universalmente aceito entre todos os muçulmanos como válido.

Mas algumas comparações são interessantes:

O Islã tem uma lei própria, a lei da Sharia, que explicitamente recomenda a morte como pena contra a apostasia, e é devidamente aplicada em alguns países islâmicos.

Ora, os EUA, em sua legislação, mandam para a morte pessoas com deficiência mental. A China tem punições exemplares para ladrões – a morte – enquanto países como a Arábia Saudita lhes cortam a mão. Pergunte a um texano médio sua opinião sobre e ele  defenderá a pena de morte com fervor quase religioso.
Mesmo em países islâmicos sob forte presença da Sharia existem os que se opõem à sua aplicação de forma literal, pois entendem que este não é o caminho.

Lembremo-nos então da Inquisição, da aplicação de preceitos “cristãos” que incluíam a tortura, a fogueira, a danação eterna… Algo que os EUA repetem hoje, com torturas e execuções de prisioneiros. E pior, sequer tendo uma legislação para apoiar tais ações!

É terrível que ateus sejam perseguidos em países muçulmanos, mas também é terrível que ateus sejam vítimas de preconceito no ocidente, nos EUA, mesmo no Brasil, por apenas quererem ter o direito de não acreditar.
Gays também são perseguidos no Brasil, no Irã, na Arábia Saudita e na maior parte do mundo. Independentemente da religião dominante.

Difere a punição, permanece o mesmo tipo de preconceito.

Há séculos o cristianismo também era indissociável da sociedade, da política, das leis e, com o tempo, evoluímos. não sem conflitos, dor e mortes. Durante boa parte desta época, ao menos da pior das épocas, os islâmicos viviam num período de ouro.

É necessário não confundir religiões com práticas, mas é verdade, as religiões são reflexo de suas práticas, mas não necessariamente das práticas radicais e intolerantes de alguns. Definiremos o Hinduísmo pelos fanáticos do partido Bharatiya Janata ou por Gandhi, por exemplo? Os islamismo é melhor representado por Ahmadinejad ou pelos jovens laicos que protestaram contra ele – e foram mortos por isto?

Trata-se com desconhecimento e temor a Ummah, que nada mais é que uma relação identitária de pertencimento a um grupo. Oras, os cristãos católicos sentem-se parte de uma comunidade ligada através do Vaticano. Os Ortodoxos de uma comunidade ligada a sua sé, em Moscou. Todo presidente dos EUA encerra seus discursos louvando não só a deus, mas àquilo que ele considera como uma comunidade cristão e, falando em EUA, é esta comunidade com valores cristãos indissociáveis que oprime afegãos, iraquianos, líbios, e mais meio mundo.

Mas esta ideologia de ódio e conquista, caso dos EUA, é compartilhada por todos? Ou mesmo, quantos Ateus não votam no Tea Party, nos Republicanos ou mesmo em Democratas que promovem a guerra e o ódio?

Trata-se o muçulmano como terrorista maluco e religioso fanático por explodir as torres gêmeas, mas os cristãos no comando dos EUA não sofrem qualquer tipo de reprovação quando explodem casas com mulheres e crianças no Afeganistão. Ou os judeus israelenses quando massacram os Palestinos.

A passagem: “Que atualmente haja mais muçulmanos obedecendo às passagens belicosas do que cristãos é tanto acidente histórico quanto maior insistência e clareza do Corão nesta mensagem de ódio, além de no ocidente a maior laicidade ter sido uma conquista dos valores seculares promovidos concomitantemente à revolução científica que nos levou de uma expectativa de vida de 30 anos para uma de 70.” É incorreta.

Não se trata de maior ou menor clareza, mas sim de transformações históricas, que passam pelas Cruzadas e especialmente pela Reconquista, por uma interpretação de alguns líderes muçulmanos de que as derrotas eram culpa de um afastamento de Allah. Tudo isto culmina com o fim do Império Otomano, a derrota final dos islâmicos frente aos cristãos que, não contentes em destruir seu Império, ainda os desmembra em fronteiras artificiais, incitando ódios tribais e desrespeitando as tradições locais.

Durante a idade das trevas no ocidente, o oriente vivia seu iluminismo.

Uma parte considerável de cristãos não se importa que se faça troça com o Papa, mas outra se importa. Uma parte dos cristãos não se importa com a prática do Aborto, até a defenda, mas uma minoria estridente não se limita a protestar, mas chega ao ponto de matar – vide casos documentados nos EUA.

Muitos muçulmanos – conheço vários – não deram a mínima para os desenhos de maomé, até riram! Não são fanáticos. Lembre-se dos protestos feitos por vários grupos cristãos contra exposições de imagens de Cristo ou de Nossa Senhora em poses não-ortodoxas ou em situações constrangedoras. Muitos não ligaram, outros tantos protestaram e até conseguiram proibir exposições.

Vamos dar uma olhada nas seitas cristãos que levam centenas e até milhares à morte. Jim Jones, os fanáticos do Reverendo Moon e tantas outras seitas, até tupiniquins, como as do bispo Macedo, que enganam e roubam milhões não só no Brasil, mas na África, nos EUA…

Mas, ainda assim, a maioria é laica, a maioria talvez seja até progressista em diversos aspectos. Mas, mesmo dentre os conservadoras, uma imensa parcela nem se importa com religião, mas com a base fundacional da sociedade como eles enxergam, permeados por valores – ora filosofia – que vem de fonte religiosa. Oras, temos ateus criminosos, ateus conservadores, ateus progressistas,… Culpar a religião em si pelos males do mundo é o mesmo que culpar a não-religião pelos ateus que cometem crimes, por exemplo.

Devemos, pois, entender a religião como um pano de fundo, mas são as práticas, o USO desta religião que, trazem os problemas. Assim como o uso de ideologias por grupos assassinos, por pessoas mal intencionadas.
Religião, ideologia, filosofia, são todas ferramentas de fanáticos. Basta algum querer usá-las. Religião ou filosofia, uma idéia na cabeça, um dogma ou uma certeza, todos são possíveis instrumentos para ódio, guerras e dor. Escolham.

As práticas dizem muito sobre a religião, mas devemos ter claro quais práticas estamos olhando.

O fanatismo independe de religião ou mesmo de ideologia. Mas é potencializado por ambas, conjunta ou individualmente.

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